31 março, 2009

Incoerência católica

Por Drauzio Varella




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Os males que a igreja causa em nome de Deus vão muito além da
excomunhão de médicos

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Aos colegas de Pernambuco responsáveis pelo abortamento na menina de nove anos, quero dar os parabéns.
Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina.
Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de
nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de
que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos.
Não se deixem abater, é preciso entender as normas da Igreja Católica.
Seu compromisso é com a vida depois da morte. Para ela, o sofrimento é
purificador: "Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será
o reino dos céus", não é o que pregam?
É uma cosmovisão antagônica à da medicina. Nenhum de nós daria tal
conselho em lugar de analgésicos para alguém com cólica renal. Nosso
compromisso profissional é com a vida terrena, o deles, com a eterna.
Enquanto nossos pacientes cobram resultados concretos, os fiéis que os
seguem precisam antes morrer para ter o direito de fazê-lo.
Podemos acusar a Igreja Católica de inúmeros equívocos e de crimes
contra a humanidade, jamais de incoerência. Incoerentes são os
católicos que esperam dela atitudes incompatíveis com os princípios
que a regem desde os tempos da Inquisição.
Se os católicos consideram o embrião sagrado, já que a alma se
instalaria no instante em que o espermatozoide se esgueira entre os
poros da membrana que reveste o óvulo, como podem estranhar que um
prelado reaja com agressividade contra a interrupção de uma gravidez,
ainda que a vida da mãe estuprada corra perigo extremo?
O arcebispo de Olinda e Recife não cometeu nenhum disparate, agiu em
obediência estrita ao Código Penal do Direito Canônico: o cânon 1398
prescreve a excomunhão automática em caso de abortamento.
Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os
católicos sempre silenciaram diante dos abusos sexuais contra meninos,
perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Além
da transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contra
os atos criminosos desses padres que nós, ex-alunos de colégios
católicos, testemunhamos?
Não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não
excomunga estupradores.
Em nota à imprensa a respeito do episódio, afirmou Gianfranco Grieco,
chefe do Conselho do Vaticano para a Família: "A igreja não pode nunca
trair sua posição, que é a de defender a vida, da concepção até seu
término natural, mesmo diante de um drama humano tão forte, como o da
violência contra uma menina".
Por que não dizer a esse senhor que tal justificativa ofende a
inteligência humana: defender a vida da concepção até a morte? Não
seja descarado, senhor Grieco, as cadeias estão lotadas de bandidos
cruéis e de assassinos da pior espécie que contam com a complacência
piedosa da instituição à qual o senhor pertence.
Os católicos precisam ver a igreja como ela é, aferrada a sua lógica
interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones. Embora existam
sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das
pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica
jamais lhes concederá voz ativa.
A esperança de que a instituição um dia adote posturas condizentes com
os apelos sociais é vã; a modernização não virá. É ingenuidade esperar
por ela.
Os males que a igreja causa à sociedade em nome de Deus vão muito além
da excomunhão de médicos, medida arbitrária de impacto desprezível. O
verdadeiro perigo está em sua vocação secular para apoderar-se da
maquinária do Estado, por meio do poder intimidatório exercido sobre
nossos dirigentes.
Não por acaso, no presente episódio manifestaram suas opiniões
cautelosas apenas o presidente da República e o ministro da Saúde.
Os políticos não ousam afrontar a igreja. O poder dos religiosos não é
consequência do conforto espiritual oferecido a seus rebanhos nem de
filosofias transcendentais sobre os desígnios do céu e da terra, ele
deriva da coação exercida sobre os políticos.
Quando a igreja condena a camisinha, o aborto, a pílula, as pesquisas
com células-tronco ou o divórcio, não se limita a aconselhar os
católicos a segui-la, instituição autoritária que é, mobiliza sua
força política desproporcional para impor proibições a todos nós.

Um comentário:

  1. Parabéns, Adroaldo. Faço minhas as palavras do Dr. Varella. Moro em Recife e não sou católico, apesar de ter sido batizado à minha revelia, quando ainda bebê. E fico impressionado com a capacidade de mídia negativa que tem esse arcebispo. Há tantas pessoas aqui, a defender a vida humana de forma sensata e racional. Esses não querem mídia. Mas o dom José. Pode aguardar que logo, logo irá assessorar o Papa, com suas dogmáticas decisões!
    Abraço fraterno.

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