09 setembro, 2007

A Hospedaria do Diabo - Parte VI






Apolo Zuni retornou à casa de Carlota à noite, sob aguaceiro descomunal. Ao chamá-la do portão tosco da pequena morada, estranhou que ouvisse a própria voz à porta da mulher. Não pensara em retornar ali tão cedo, ainda que a suspeita de que fosse mesmo pai do Piá não o abandonasse há bom tempo mais que por uma semana, aquelas em que a entrega de gás não subia o morro.
Uma réstia de luz mortiça projetou-se no acanhado alpendre desde o interior da casa, iluminando fracamente o perfil de Carlota convocando o moço encharcado a entrar. Zuni fechou a pequena sombrinha que tomara emprestado da própria Carlota em uma outra noite e a pendurou pingando num gancho na parede externa da casa. Sacudiu forte a capa de plástico azul da empresa e a transformou rápido numa pequena bola empapada, que enfiou num saco da mesma cor retirado do bolso de trás das calças de brim.
- Tiro as botas?
- Não carece, o assoalho está uma lagoa mesmo. Entra. Rápido que a ventania pode resfriar as crianças. Recém dormiram, as espoletas.
Carlota respondia e já o puxava carinhosa, com a mãozinha de unhas pintadas em vermelho vivo espalmada à nuca do homem. Para completar o gesto, mignon que era de porte, Carlota ficava à ponta dos pezinhos, uma bailarina em demi, quase voando. Era por essa razão que sempre retornava ali, explicava-se o homem já embevecido com o gentil e fino trato que lhe dispensava Carlota.

Aos 13 anos Carlota engravidara de um namoro que logo se desfez, razão porque abandonou a escola de balé em que dançava desde os sete. A família quis o aborto. Ela rechaçou, afrontou. Foi mandada para a casa de parentes no interior, onde ganhou Zelito e ficou lavando para fora apenas até juntar dinheiro que lhe pagasse a passagem e um mês de estadia numa pensão que localizou por jornal. Chegou na cidade com a roupa do corpo, mais duas de muda e uma sacola fedendo a fralda cagada, do que se desculpou de pronto com a dona da pensão.
- Isso é só por causa da viagem que foi longa, eu cuido bem das roupas, sei lavar muito bem, se a senhora precisar, inclusive lavo as daqui e cobro metade, bem baratinho.
- Não carece, mocinha. Entendo bem tua necessidade. Eu mesma já passei por isso. Vá entrando e depois nos entendemos. Teu quarto é aquele.
A mulher parecia de há muito conhecida. Afável, falava baixinho, gesticulando largo, mostrando cozinha, sanitário, pátio, tanque e uma ampla sala onde ficava a maior mesa que Carlota já vira até aquele dia. Dava bem umas 30 pessoas sentadas ao mesmo tempo. O “pensionato familiar só para moças” , como se lia na tabuleta à porta, acabava de receber a décima terceira pensionista. O neném não contava como hóspede, assim como os pequenos filhos de outras sete hospedadas ali também não, fossem meninos ou meninas, que podiam ficar com as mães até com 12 anos de idade, explicava um pequeno folheto que a dona da pensão passara a Carlota para “leitura com atenção”.

Apolo Zuni espreguiçava-se no apertado reservado improvisado por Carlota para separá-los das crianças na cama única da pequena família.
- Cama de trinca, que aqui não tem casal, brincava a mulher, zombando de si mesma pelas condições precárias em que sobrevivia.
O amor feito em silêncio deixara marcas nítidas em lençóis amarfanhados e denso cheiro de sexo mesclado à lavanda mentolada dele e ao toque de amor de florais dela.
Aproveitando o que lhe pareceu ser o melhor momento para tanto, Pólo disparou a pergunta que lhe martelava a cabeça semana sim, semana não:
- O Piá é meu filho, Carlota?
Sem piscar, nem mover músculo da face, apenas tremendo levemente um dos pés expostos para fora do lençol que lhe recobria o corpo alvo e desnudo, a unha vermelho vivo faiscando reflexos da tênue luminosidade da pequena lâmpada de abajur, Carlota replicou em tom de voz frio, grave, quase soturno:
- Sim, Apolo, o Piá, o Zelito, os trigêmeos da vizinha aí da frente e a puta que foi parida pela macega também. Te manda daqui, merda! Tá me tirando pra zona! Pega teus brinquedinhos e salta fora!
A fúria não alterou o tom da voz de Carlota, que era baixo por causa das crianças a dormir, mas também porque vizinhos dela adoravam saber do que se passava na casinhola para levar à feira. A força do braço que empurrou o homem para fora da cama no rumo da porta, no entanto, parecia de quem carrega mais que botijão de gás, isso Apolo Zuni percebeu. Sentiu, e apressado juntou peças de roupa no chão, vestindo-se rápido porque aquele surto de Carlota ele já sofrera outra vez e não queria provar de novo. Quando ia trancando a porta, o homem já fora da casa desembrulhando a capa plástica para se abrigar da chuvarada, a mulher falou à guisa de despedida:
- Não vai cair na merda outra vez, ô tanso!

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