14 fevereiro, 2008

Um menestrel de dois milênios

Texto e foto Adroaldo Bauer Corrêa



Zé da Folha não vai aos caldeirões e faustões – estes janelões dos de sempre e atualmente vitrine permanente do outro da dupla sertaneja que o fortuito desfez e da onipresente e televisamente única cantora que os não baianos conhecem da Bahia, aquela senhora que vende cerveja com as pernas pra gurizada e xampu pra senhoras incautas com mais idade que ela depois de já terem feito quase tudo para arranjar aquele cabelo sem aquela voz, sem produção e sem luz e azul de fundo.

Zé da Folha também não vai àqueles outros programas menos sutis da madrugada, que já vendem o bagaço mesmo do tope da sociedade ordinária que ainda vivemos.

Ele não me disse que não gosta de dormir tarde, mas é uma conclusão possível, dado o tamanho da jornada de palco de mais de quatro horas seguidas que faz só no primeiro turno e o aspecto saudável de suas feições já às 8 da manhã, quando chega para tomar posse de um canto no Bric da Redenção, na Avenida José Bonifácio, em Porto Alegre.

Visivelmente um homem já maduro, Zé da Folha também há algum tempo passou da idade de freqüentar programas de calouros ou ser apresentado ao Brasil que ainda suporta ver a mesma idéia mais ou menos de há 30 ou 20 anos se repetir até a náusea religiosamente aos santos sábados e domingos nem tanto na televisão brasileira, assim mesmificada embora tecnicamente uma das melhores do planeta.

Porque tal acontece já seria assunto para sociólogos ou, até, taxidermistas (lembraram de outras duas?), mas é tão lamentável que isso ainda ocorra como o caso daquela lixeira esnobe de mil reais comprada para a casa do tal reitor da capital pour quoi noblesse oblige. E nos tempos atuais, século 21, terceiro milênio já! Haja biscoitos! Refiro já a atual capital, não a Velha Cap, motivo de trocentos sambas-de-enrdo sobre a chegad da corte do joão-fujão-que-enganou Napoleão e das loucas marias.

Cabe o alerta para incautos e apressados não irem tirando conclusões abreviadas de que tudo de bom e de ruim acontece no Rio de Janeiro ou em Belém do Pará nesse momento das nossas circunstâncias. Há podres inclusive no Reino da Dinamarca, porque, fosse Hamlet, seria sincrético, como já contei pra vocês aqui, porque, como nos diz Rosane de Almeida Pires, comentando sobre o autor do texto, Cuti, também procuro "romper com a versão oficial encenada pelo discurso pedagógico da nação – que inibe a presença da diferença..." e, ainda que haja moinhos de vento, há Redenção.

Também andam desavergonhadamente metendo mulher em cadeia de homem em outros estados, também tem carnaval criativo e bonito em São Paulo e aqui e em Floripa e em Recife e em Olinda e em Salvador, no próprio Tríduo de Momo, veja só (ainda que a levada do tambor à italiana seja uma outra discussão, já para conhecedores de música, não para apenas impressionistas como eu).

Pois Zé da Folha chega cedinho e abre uma cadeirinha destas das mais comuns do povo; ajeita, abre e fixa no asfalto também um guarda-sol, arruma um cartaz minúsculo sobre a tampa da caixinha do bota-aqui-se-você gostou de ouvir e se divertiu.

foto Luciano Lanes/PMPA

Como ser humano que também é, sem que haja necessidade de qualquer ministro reconhecer, Zé da Folha se alimenta e , ao que sugere o cartazinho, é da função de artista do povo que tem vivido.

Nada me falou que não sou de atrapalhar espetáculo fazendo pergunta boba, mas intui que dali e do que faça igual em outras paragens em outros horários, tira o sustento da semana, do mês, do ano, da década, não diria do século que o homem é forte e rijo para um centenário.

Não entanto, recordo de que vejo e ouço o Zé da folha nessa função artística há bem uns 40 anos. Seja na Rua da Praia (que não tem praia, que não tem rio), onde penso que o vi pela primeira vez pelos idos de 64, 65, 66 (um mal tempo, sem dúvida alguma), seja no Bric da Redenção.

Bagre Fagundes, com Antonio (Nico) Fagundes um dos autores do Canto Alegretense (não me pergunte, onde fica o Alegrete, segue o rumo do teu próprio coração...) o segundo hino mais popular do Rio Grande do Sul – o primeiro é o da República Farroupilha, que é o oficial do estado, empatados em terceiro e quarto lugares têm-se os da dupla GRE-NAL, mas não se arrisque a decidir qual dos dois é à frente do outro que leva sova de relho ou ameaço de adaga.

O quinto é o Hino nacional Brasileiro, ainda com algum entusiasmo.
Pois tava dizendo que enquanto ouvia Zé da Folha assoviar e acompanhar-se ao violão para executar o hino, digo, o Canto Alegretense, vi o Bagre atravessar a rua, uma das pistas da José Bonifácio que se fecham ao trânsito de veículos automotores quaisquer para o pedestrianismo lerdo e lasso de velhos, moços e crianças e muitos, muitos mesmo carrinhos de bebês.

Naquele domingo vi até um de trigêmeos dum jovem e corajoso casal aparentemente feliz, com riso frouxo estampado nas carinhas alegres de pai e mãe fresquinhos. Não me pareceu ainda um riso nervoso.

Chegando ao lado outro da via, Bagre já pôde ouvir melhor os acordes ao violão e a fina melodia de sua composição assoviada em uma folha de um modo exímio pelo Zé da Folha. Pôs a mão na algibeira e puxou uma nota de dinheiro [ Aqui se diz, abriu a guaiaca] e a depositou na caixinha de coleta do cachê espontâneo, sorridente e feliz de se ver ali interpretado por tão reconhecido artista popular.

Zé da Folha tem um público fiel. Alguns ele reconhece e até chama pelo nome ou provoca pela pedida musical. A senhora loura, em esportivo traje pára e ele, incontinenti, sapeca: Aqueles olhos verdes, no assovio e no violão.

Ela permanece, após aplaude e pede outra, mais outra e põe outra nota na caixinha do Zé, o que parece faz há muito, de tanto que se conversam e mostram se gostar, o que fica evidente nos intervalos entre as músicas, que o Zé aproveita para molhar a palavra com água de uma garrafinha destas comuns de plástico transparente, mas sem rótulo que, aparentemente, Zé não é patrocinado por nenhuma cerveja ou refrigerante, ainda. Não tem camarim o Zé, nem uvas, frutas outra da estação ou toalhas brancas.

Ele pega de um ramo de árvore que trouxe de casa uma nova folha, bem escolhida, seu segundo instrumento. Com o pé direito, ele ainda bate no chão um pandeiro, somente as platinelas, sem couro, para marcar o compasso, que aqui também tem, por outras regras.

Zé da Folha tem vasto repertório para o violão que acarinha como filha dileta. Vai do tango ao bolero, do chamamé ao bugio, passando pelo vanerão até o samba-canção, o de partido alto e mesmo a bossa nova.

Se pedirem, alguns ainda imberbes e galhofeiros por provocação, também toca rock. Zombeteiro, como convém à fleuma do artista que há muito sobrevive da contribuição livre do público à caixinha, macaqueia a gurizada com uns trechos curtos de pancadões, technos e dances, essa modas ligeiras que a gurizada pega e larga como se fosse cueca usada ou chilé-balão, de tanto que muda de nome pra mesma toada quase nada musical.

Tum-tum o coração já faz desde nosso primeiro minuto de vida. Se amplificar taquicardia, dá festa, assim como para inimigo qualquer pé de galinha dá canja. Imagine-se aquelas que têm, além da adrenalina, ingredientes outros externos, digamos assim, a incentivar adrede o organismo...

Zé da Folha estava de costas, percebeu o Bagre aparentemente pelo entusiasmo do público que aplaudiu e pôs o canto na melodia (porque o Zé só toca, assovia e faz marcação, lembram?). Isso talvez seja a principal razão do sucesso do programa deste artista: o povo vai ali, tem uma base musical de qualidade, variada, um intérprete cordial e gentil, bem-humorado, que chega a palco antes do público. E ele mesmo, povo, canta.

foto Ricardo Stricher/PMPA


Pois enquanto agradecia o aplauso, Zé só se apercebeu que era de fato o compositor da música que acabara de tocar quando esse ia já há alguns metros dali, seguindo o passeio aquele que já lemos antes nesse texto, que as pessoas, a maioria, eu entre elas, vamos ali para caminhar, ver gente mais bonita que a gente, que melhora o dia, encontrar outras pessoas amigas, tomar chimarrão em pé, uma moda criada ali no Bric há mais de 25 anos.

No Rio Grande se fazia por uso era roda-de-chimarão, em bancos toscos de madeira no galcão das estâncias antigas ou em cadeiras (amigo, boleia a perna, puxe o banco e vai sentando, encosta a palha na orelha, que o amargo, vou cevando).

Essa modernidade de tomar chimarão em dupla, trio, quarteto, quinteto ou mesmo só, todos em pé e a passeio, é coisa de guri daquele tempo. Mas pegou.

Quem sabe algumas já batidas e por tal inesquecíveis peças de raves ou bailes funks venham a ser assoviadas em praça pública, cantadas pelo povo, acompanhadas ao violão acústico, como costuma acontecer com as canções que permanecem no imaginário popular e reaparecem nas praças dos burgos desde o já imemorial tempo dos menestréis medievais no milênio passado.

Pela aparente boa saúde do Zé da Folha, por muitos e muitos anos mais isso vai ser o ofício dele (evoé!) ali mesmo no meio da rua, no meio do povo, sob aplausos entusiasmados e sorrisos gentis dos passantes e alguns ficantes como eu.

Depois de um tempo que nem senti passar, em que também dei minha cota para o almoço do dia do nosso artista, além de vender um exemplar da minha novela para uma das fãs do Zé, curiosa em saber de quem era e o que era aquele livro que eu tinha nas mãos, pois após isso retomei o passeio aquele de que já falamos e tive uma certeza a poucos metros da berlinda do Zé da Folha.

Vendo uma dupla de meninos sentados no meio-fio, um outro proscênio de artistas populares, cantando alto, ainda sem muita afinação, se acompanhando ao violão, músicas que já existiam antes de eu ter nascido. A certeza que tive é de que permanece em cultura num lugar aquilo que o povo do lugar queira e preserve e defenda... Para poder assoviar, cantar junto e aplaudir.
Zé da Folha, como o gato ao tigre, não deve ter dito tudo àquela cigarra do La Fontaine.
Eu pelo menos já o vi mesmo nos invernos ali. Quando chove muito, mesmo sem nos falarmos, combinamos de não ir. Estou também certo de que vamos continuar nos vendo enquanto vivermos.
E os meninos, talvez por muito pobres e ainda crianças, já estão formando seu público.
Merde!

Um comentário:

  1. Adoreeeeei!
    Sabe Adroaldo eu vi o Zé da Folha, quando pela primeira vez entrei no Tetro São Pedro, um antigo desejo que realizei ano passado.Ele estava abrindo o espetáculo Tangos e Tragédias, foi demais, emocionou-me sua simplicidade e seu talento.
    Só podia ser você, saber dar valor e escrever um texto tão interessante.
    bjs Mara

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