17 agosto, 2007

A Hospedaria do Diabo - Parte III



A intermitência da estrepitosa sirene de um carro de bombeiros acordou de supetão o Morro da Carlotinha Piá. Adultos e crianças correram às janelas e portões. As de colo e os bebês desataram em choro. Polvorosa era aquilo. As vielas estreitas e o barral não permitiam progresso rápido ao caminhão. Enfiados em improvisados abrigos contra a chuva, que iam de chambres a toalhas, passando por sacos de aniagem à moda de capotes, a multidão que se formou rápida abrandou ainda mais a velocidade da marcha. Formou-se procissão à entrada da pequena vila onde o chamado telefônico dizia estar acontecendo um incêndio.
A sirene ruidosa convocara mais que a urgência. Espicaçou a curiosidade do povo. A guarnição emperiquitada no carro parecia de santos em andor. Não faltaram sombrinhas, guarda-chuvas, até guarda-sóis de praia arremedando estandartes. O séqüito transmudou-se em fúnebre cortejo no minuto mesmo em que a sirena foi desligada. No cume do morro, a um canto de uns matos, uma casinhola isolada ardia em chamas mesmo sob a chuva, que já arrefecera do temporal que fora há menos de meia-hora.

Valafora escolhera a perua preta com faixas brancas para subir Ao Morro da Carlotinha, argumentando ao parceiro que o veículo maior emprestava mais autoridade à operação que o pequeno sedan. Na embarrada curva de acesso à via principal da vila, com a redução de marcha, a perua refugou o aclive e quase desanda morro a baixo, em ré. Cheguêva grudou-se ao freio-de-mão enquanto gritava para o colega engatar a primeira marcha que acavalara a transmissão.
- Aí doutor! Essa lomba dá trabalho até pra caminhão de gás. Toca de freio puxado que ajuda.
Cheguêva não estranhou o cumprimento nem a orientação que acabou ajudando. Venceram a lomba em curva em segundos que pareceram horas de aflição, mais pela expectativa do vexame que dariam em público do que pelo risco corrido. Não estranharam a quantidade de gente acompanhando a perua à frente e nas laterais por terem já ouvido há bem dois quilômetros dali o inconfundível sinal dos bombeiros.
- Então, colega, adiante: roda a manivela e faz soar a sirene e vê se afasta esse povo que não tá ligando pra autoridade do teu camburão. Valafora não respondeu, mas obedeceu. Ele mesmo improvisara a sirene manual desde que a de fábrica há muito pifara sem concerto. Pegou uma extensão de fios por debaixo do painel dianteiro do carro, ligou nos contatos e rodou com volúpia quase infantil a maquineta posta para fora pela janela.
Abriram alas muito lentamente na multidão e invadiram o pequeno sítio da funesta ocorrência. A guarnição dos bombeiros encerrava já os trabalhos. Pouco pudera fazer além de recolher os corpos carbonizados de uma mulher e duas crianças para um rabecão e isolar o acesso à casinhola em escombros, as toras de madeira do telhado arriado pelo fogo ainda esfumaçando do rescaldo ajudado pela chuvarada. Uma câmara de televisão perseguia o facho de um pau-de-luz por sobre a ruína calcinada recolhendo para a edição da manhã as imagens de uma boneca de plástico num carrinho de bebê.
- Que circo é esse? Que vocês pensam que tão montando? Não chega a desgraça, tem que ter crueldade? ´´
tenho certeza que vão dizer lá no jornal que plantaram o brinquedo aí, com cobertorzinho rosa delicado e tudo e que a casa queimou toda e matou três e a boneca de plástico se salvou do tenebroso incêndio. A crueldade não tem mais limite! É tudo urubu em banquete no inferno! Arreda, arreda!
O protesto do inspetor Cheguêva era dirigido fisicamente aos jornalistas da TV, a peroração contra a farsa óbvia também justificava entre os mais próximos a própria encenação, o trovão da voz impostada, os gestos de comando, tudo há muito estudado em laboratório de centenas de cenas iguais era destinado à alma do apinhado, que não movia milímetro de espaço para a investigação ser iniciada se não fosse tocada em profundidade. E ao público da TV se a edição não cortasse a tomada dele.
Cheguêva arrematava como sempre naquelas circunstâncias: “quem ficar é testemunha, se tiver algum crime pode ser indiciado como suspeito, podem ir dando lugar ao trabalho da polícia”. As últimas três palavras eram sempre soletradas, pausadamente, ainda em voz alta, mas já em tom conciliador e conselheiro, dirigidas agora só ao povo presente.
Explodira um botijão de gás. A alvenaria da cozinha viera a baixo arriando também a madeira do telhado. O fogo pegou nas treliças, nos tabiques, na mata-junta, no soalho de pinho, nos escassos móveis da peça, feito fogueira junina.
- Na urgência de acudir, pulei duas valetas vindo para cá e me arranhei toda segurando no arame farpado pra não cair no lodo, dizia sem parar a quem chegasse, a vizinha de fundos da casa incendiada. Falava e erguia a mão à altura dos lábios o gesto dando extensão às palavras. “O fogaréu era junto. Uma chama só, lambendo toda a outra peça de madeira, que era quarto e sala”, falava compulsiva, reiterando o detalhe do próprio acidente com a cerca. Aglomerado na viela ainda ladeada por duas caudalosas corredeiras resultadas do aguaceiro, o povo lamentava condoído a rapidez do sucedido sem chances ao socorro mesmo de vizinhos de lado e frente, coisa de 150 metros no máximo do lugar da tragédia.
Eram já quase três horas da madrugada, Valafora dentro da perua conversava com uma outra pessoa na janela e teve um estalo. Despediu rápido e sem rodeios a mulher que já se debruçara na janela do veículo em prosa solta e só não correu no encalço de Cheguêva pra não resvalar no lamaçal e rolar pra uma das valetas da viela, agora já sem as cachoeiras antes evidentes.
- Chê! Chê!
- Calma, respira fundo e fala...
- Guardou a lata do sujeito contra o Chile?
- Que língua é essa, homem? Fala feito gente.
- Cheguêva, te destes conta que só uma pessoa desceu o morro enquanto nós vínhamos para cá e todo o resto era essa romaria aos céus? Justo o sujeito que te mandou grudar no ferro pra eu tocar fundo, lembra?
Cheguêva fingiu que não era com ele a provocação capciosa da malandragem e respondeu à altura do perguntado:
- Vamos investigar, doutor Valafora, vamos investigar...

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