15 agosto, 2007

A Hospedaria do Diabo - Parte II

Um plantão de polícia na sexta-feira já é uma merda, com esse gelo de zero grau e chuvarada, pior será, ajuizava com dois botões de um surrado casacão três quartos o inspetor Cheguêva.
A uma da madrugada, então, a geladeira em que se transformava a sala úmida de alvenaria já sem reboco do prédio da 13ª Delegacia de Polícia era um cenário que cooperava com o raciocínio do polícia, que apenas dormitava em razão de que pés, pernas e a bunda; da cintura para baixo, o corpo inteiro, não havia jeito de aquecer.
Tentara todo o possível. Mover-se. Enrijecer os músculos. Descalçar os sapatos. Trocar de meias, que trouxera nos bolsos um par delas de lã, sobressalentes para aquelas ocasiões.
Por fim, medida que aprendera com mendigos nas rondas de rua, enfiou jornal velho nos sapatos, que molhara na chuva para chegar de casa até ali, caminho diário de um pouco mais de dois quilômetros percorridos a pé, em qualquer condição de tempo.
Olhou a folhinha do calendário e deu-se conta que também era 13 o dia do mês de agosto em que fazia aquele plantão polar na 13ª. Suspirou desalentado.
- Vai dar merda!
- Que merda que nada, considerado, é barro. Fede, mas é só barro. Cai um caldo de dar dó. Vai desabar barraco no morro. É só esperar. O mal já foi feito, falou à guisa de saudação à chegada o inspetor Valafora, colega de plantão de Cheguêva naquela sexta.
- E choveu só pra ti, ô sem alma? Eu molhei o pé no vaso aqui do mictório, é isso? É água tanta que a Várzea do Agrião já virou raia de remo e vela, mais um pouco os sem patrão vão jogar os caícos nágua do Arroio Areão, é só esperar. Boa-noite pra ti também, colega. Senta aí e vá encilhando o mate que eu já ponho a chaleira pra aquentar.

Não tinham trocado três cuias, a parelha foi interrompida pela estridente campainha do telefone, já posto em sala contígua como tática de precaução para evitar desmaios de paisanos, modo como os polícias chamavam o contribuinte que se apresentasse à DP para requerer serviços.
Lembravam sempre em momentos de descontração de uma certa feita em que um paisano despenhou-se para baixo de um birô no tilintar de trovão do telefone e não havia santo que fizesse o homem acreditar que fosse apenas uma campainha.
- Me alcança uma arma que eu ajudo! Tá vendo alguém? São muitos? O ronco é de calibre grosso, podem crer.
- Tu és prejudicado de guerra, vivente! Sai daí debaixo e te apruma nos conformes que isso aqui é só local de trabalho, não temos plantão médico. Alguém traz aí um chazinho pra acalmar o moço dos nervos, convocara o delegado que ouvia a parte numa queixa contra uma vizinha.
- A sirigaita põe a vitrola no último furo, com aquelas modas de viola e fica se estufando pros moleques da rua toda. Já tem visita chegando até da rua de baixo pra visitar o ponto turístico. É pura algazarra o dia todo. Até dez da noite, quando ela desmancha o teatro, fechando a cortina com um adeusinho beijado de mão, seo delegado.
O queixoso acabara de ouvir do funcionário que há direitos e bom senso, que uma conversa ia ser feita com a dona quando o telefone tocou naquele espalhafato atingindo em pleno os nervos já abalados do homem.
- Beba o chá e acalme-se. Essa sua queixa tem remédio, aconselhava paciente o polícia quando recebeu de troco uma resposta inusitada:
- Já eu tomo em casa, o senhor me respeite que eu quero é sossego.
A reação desmesurada do queixoso foi recebida por estrondosa gargalhada dos demais presentes, uma senhora com um guri de olho roxo e roupa rasgada; dois homens de gestos efeminados que até ali haviam sido apenas sussurros e cochichos, o gurizote faz-tudo, que era estafeta da repartição e Dona Ofelina, a servente, que quase deixa cair a bandeja em que, solícita, já trazia uma xícara de chá para o alterado queixoso.
O episódio virou lenda na 13ª.

- Atende lá, Valafora. É pra ti. Aliás, às duas da madruga só pode ser pra ti, como sempre deve ser aquela...
- Pode parar por aí, considerado, já estou lá. Deixemos as privadas no recato...
- Se a privada é pública, não tem remédio, colega...

Com o retorno do silêncio ao ambiente, agora sem o tonitroar do alarme ligado ao mecanismo sonoro do telefone, Cheguêva apercebeu-se de que a chuva estancara. E também de que os pés já se haviam aquecido com a receita infalível apropriada dos miseráveis. “Melhor que não sou pé-frio em sexta 13”, regozijou-se o inspetor, ainda sem suspeitar do que ou quem era ao telefone, de onde não retornava o colega há já uns cinco minutos.
- Tragédia! Explodiu um botijão de gás, incendiou um barraco no Morro da Carlotinha Piá. Tem morte. Parece que até criança. Te apronta que vou chamar o vigia pra segurar o plantão. Pego a camioneta ou o sedan?
- Pega um carro que ande e nos traga de volta, Valafora, deixa de suplício. Anda logo senão chegamos depois dos bombeiros irem embora e o povo meleca a cena do crime. Pressa, homem!
- quem falou em crime, ô agourento. É incêndio. Explosão de botijão de gás e fogo?
- Tem morte, é quase crime. Pra mim é assim. Pressa, vivente!

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