18 janeiro, 2010

Haiti. A cruel história de um país esquecido

IHU On-Line 15/1/2010

O terremoto que demoliu o Haiti só confirma as premonições contidas nas leis populares do engenheiro aeroespacial norte-americano Edward Murphy: qualquer situação, por pior que seja, é suscetível de piorar.

Desde o vitorioso levantamento das milícias escravas em 1804 contra a dominação francesa, que deu origem à primeira república negra da América, o país encadeou calamidades físicas, sociais, políticas e econômicas. Tudo se resolve e se destrói de maneira extraordinária na mendicante esquina da América Latina: as sucessivas crises governamentais foram obtidas com facões, pobreza, fome e migrações massivas, e os desastres naturais não a apagaram do mapa graças à ajuda internacional.

A reportagem é de Juan Jesús Aznárez e está publicada no jornal espanhol El País, 14-01-2010. A tradução é do Cepat.


Os tremores registrados na escala Richter na porção oriental do Haiti derrubaram os restos de um país de 10 milhões de habitantes arruinado por déspotas, corrupção, fracassos, desmatamento, analfabetismo e doenças quase bíblicas. As 250.000 crianças entregues por famílias miseráveis a lares menos miseráveis, em regime de semiescravidão e desamparo, são um dos numerosos males sofridos pelo país de origem africana, que se mantém em pé graças aos 9.000 membros da missão de paz da ONU e à constelação de ONGs. Mas sem consensos parlamentares e sem o apoio dos países e grupos de doadores, reina a instabilidade política e a violência.

Só as catástrofes resgatam do esquecimento o enclave negro, e só os furacões de 2008 levaram mais de um bilhão de euros e destruíram mais de 112.000 barracos do Haiti, que desfrutava de certa estabilidade desde a queda do padre populista Jean Bertrand Aristide, em 2004, mas que nunca soube ou pode erradicar as causas de sua prostração.

A renda média chega aos 600 dólares anuais e mais da metade sobrevive com menos de um dólar por dia. “E se nós sairmos, quem cuidará desta gente”, comentava uma freira navarra a este jornalista em sua primeira viagem ao país, nos anos 1990.

Durante aquela visita à Cité Soleil, e em posteriores, inclusive a das revoltas e linchamentos de rua que expulsaram Aristide e ceifaram a vida do jornalista espanhol Ricardo Ortega, a insalubridade e o amontoamento do bairro mais miserável de Porto Príncipe produzia arcadas. Catadores, panelas de imersão em águas sujas, a mistura de crianças e ratos, e o desespero e o fatalismo dos favelados em greve, “é fácil entrar na Espanha?”, eram deprimentes.

A vista de águia, do terraço do Hotel Montana, mexidos pelo bongo de grupos locais, jornalistas, funcionários e cooperadores estrangeiros, diziam que o Porto Príncipe do horizonte era belo, misterioso e lendário.

A história do Haiti é excessiva antes e depois do chicote colonial francês. Há 206 anos, o general Jean Jacques Dessalines proclamou a independência dizendo que a Ata da Constituição deveria ser escrita sobre o pergaminho da pele de um branco, tendo sua caveira como tinteiro e a baioneta como pena e entintada no sangue dos fazendeiros que lucraram com o sangue dos seus.

No mesmo ano, o patriota se coroou imperador, e meses depois morreu violentamente. Até a invasão norte-americana de 1915, se sucederam 23 tiranos, todos ineptos. A sanguinária saga de François Duvalier, o Papa Doc, durou de 1957 a 1986. Todos tiveram pretensões napoleônicas. “Aristide é o rei!”, gritavam as concentrações oficiais às vésperas de sua queda.

Abatida pelo amargo futuro nacional, Michèle Pierre-Louis, primeira-ministra até outubro do ano passado, atribuiu à abjeção das elites haitianas, integradas pelos mulatos, homens de negócios, sindicalistas ou agricultores, boa parte dos males: “são como um enorme elefante sentado sobre este país, sem se mover. E não se pode mover porque não há uma classe política, não há partidos políticos. Todos se corrompem e pervertem”.

Washington baixou o polegar de Bertrand Aristide, acusado de sectarismo e corrupção, porque a Casa Branca exerce uma espécie de protetorado sobre o Haiti desde que o presidente Woodrow Wilson ordenou a sua invasão há 95 anos para pacificar suas cidades, cobrar as dívidas do Citibank e emendar o artigo constitucional que proibia a venda de terras a estrangeiros.

Nem os franceses nem os Governos da independência nem tampouco o presidente René Preval, no poder desde maio de 2006, conseguiram reverter a cadeia de reveses promovida pela coalizão de homens e natureza: o Haiti ocupa o posto 150 dos 177 países do Índice de Desenvolvimento Humano, a esperança de vida de seus habitantes é de apenas 52 anos, apenas um de cada 50 recebe um salário, o desmatamento arrasou 98% das florestas, e os ingressos por suas exportações de manufaturas, café, óleos e manga são quase uma propina, pois a dívida externa ultrapassa os bilhões. As remessas dos imigrantes nos Estados Unidos são tão fundamentais quanto a inveja do destino dos compatriotas que conseguiram se estabelecer em Nova York ou Miami.

Sucessão de golpes de Estado

O Haiti, primeiro Estado latino-americano que conseguiu a independência ao se libertar em 1804 do controle da França, teve desde a sua fundação uma tumultuada história política marcada por golpes militares e crises institucionais.

- Em 1957, eleições controladas pelos militares dão a vitória a François Papa Doc Duvalier, e que em 1964 se proclamou presidente vitalício e instaurou uma sangrenta ditadura que deixou como herança, em 1971, o seu filho Jean-Claude. A ditadura dos Duvalier, sob cujo regime morreram 60.000 pessoas, acabou em 1986, quando a oposição chegar ao poder, após meses de greves. Duvalier filho se exilou na França.

- Leslie Manigat foi o presidente eleito em 1988, nas primeiras eleições depois da ditadura. Manigat foi deposto apenas quatro meses mais tarde pelo general Namphy, derrubado no mesmo ano por outro general, Prosper Avril, que se demitiu após fortes protestes em 1990.

- Após o Governo provisório de Ertha Pascal-Trouillot, o padre Jean Bertrand Aristide, fundador do movimento Lavalas (Avalanche), venceu as eleições de dezembro de 1990. Seu Governo foi interrompido menos de um ano depois pelo golpe militar do general Raoul Cédras. Aristide se exilou no México, de onde voltou em outubro de 1994

- Nas eleições realizadas em 1995, a organização política Lavalas venceu com uma ampla maioria e René Preval recebeu o cargo presidencial da mão de Aristide. O ex-sacerdote voltou ao poder em 2000, depois de se declarar vencedor de eleições tachadas de fraudulentas, já que a participação não ultrapassou os 10%.

- O descontentamento desencadeou em 2004 uma sangrenta revolta que, após violentos combates, pôs fim à presidência de Aristide. O dirigente deixou o país em 29 de fevereiro de 2004 e se refugiou na África do Sul, onde reside até hoje.

- Em 2006, René Preval venceu as eleições presidenciais realizadas sob a vigilância da Minustah, a missão da ONU que desde 2004 se estabeleceu no país para garantir a sua estabilidade.

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