22 janeiro, 2007

O dia do descanso de Deus

Capítulo 2
Uma outra vez Romão se vira assim tão ou mais desafiado. Era linda a morena. Das que param o trânsito mesmo. Das que dão torcicolo em marmanjo. Andar macio, um cuidado singular em saltos altos e finos, meneios leves e sensuais das cadeiras formadas na medida certa. Virando suavemente a cabeça ao passar por ele, sorriu e piscou rápido. Naquela vez alguém poderia ter visto Romão tremer. Isto se a testemunha fosse atenta a impacto tão fulminante quanto breve. Ele sentiu o corpo inundado por calor úmido de um mar verde jamais visto. Os olhos da morena racharam a crosta áspera de um Romão até ali invicto. E o puseram sem norte feito caíque preso em redemoinho de lagoa. Sem fluxo coerente de corrente, ficou-lhe o coração exposto, acelerado, aos pulos.
Acabara de cuspir na sombra e se deparou com a empreitada. Das grandes. Pensou até que nunca antes experimentada por alguém em tanta intensidade. Aquilo era o que era. Fosse amor, fosse paixão. Coisa de Deus ou coisa do Cão. Divina, a morena que prendeu Romão, o fez em puro recato, mesmo belíssima mulher.
- Prova provada de que é possível ser linda sem cair na vida, cochichava Florzinha, espantando cachorros imaginários de perto de si com gestos estabanados dos braços esgrimindo uma vassoura, o que começou a fazer já quase adulta, de uma certa feita, e nunca mais parou.
Divina e Romão casaram e logo tiveram filhos. Uma era menina. Linda igual à mãe, diziam todos que viam Laurita, como a vida batizou. Geniosa, Laurita da Divina era num tempo sonho doce, devaneio. E, já em seguida, “açoite da alma, cravelha a esticar as cordas da razão”, descreveu certa vez um repentista homenageando a mulher que desabrochava na menina.
- Isso é prosa mole de louco ou apaixonado, castigava Florzinha, agitando braços e vassoura. Como se pudesse alguém ser um sem ser outro, arrematava aos próprios botões.
Já, os meninos de Romão, trigêmeos, pareciam gente comum. Os filhos de Romão – e a filha! Esbravejava sempre uma Laurita exasperada – foram crianças fortes, que ainda tiveram sarampo, mas de resto sadias, estudiosas, endiabradas, às vezes todas, não só Laurita. E também muito felizes...
Até o dia da desgraça.

Capítulo 3



Com mais de 30, porque de mulher bonita não se sabe a idade, Divina foi morta a facadas. Parecia dia de descanso de Deus.
- Foram quatro homens, Romão. A pobrezinha não se deixou violar, mas sangrou até morrer, dos ferimentos duma quantidade enorme de golpes de faca. Jesualdo, o delegado chamado a cuidar do caso, dava o triste relato, acabrunhado e ainda de pé frente ao cadáver da morena Divina.
Romão, chegado ali às pressas por convocação da tragédia, era o mapa da dor. Face crispada, inerte, mãos apertadas em punho terminavam braços caídos ao longo do corpo. Alguém jura que viram lágrimas a marejar-lhe os olhos. Mas não prova. Nem se sabe que Romão tenha jamais falado disto a alguém.
A história, no entanto, é contada assim desde o começo e repete, repete, vira verdade maior que o fato.
- Chorar não muda o homem, é certo, mas lhe mostra a alma na inteireza, a mãe lhe dissera da vez em que caíra feio do lombo do primeiro potro que fora montar em carreira e lanhou costas, cabeça e pernas no pedregulho da cancha reta.
- Estropiado, mas vivo e pronto pra outra, saudou Alarico, ajudando o menino Romão a levantar e sacudir a poeira que se misturava a finos fios de sangue na camisa nova de flanela xadrez amarelo e preto.
Dor pela morte da mulher adorada, raiva pelo anseio de justiça e amargosa mágoa pela reparação impossível, suspeitava Jesualdo.
Por muitos anos o policial remoeu o caso, que investigou nos limites da lei. De outras maneiras, Romão foi quem cuidou.
Testemunhas contaram sobre “uma camioneta azulona” com os vidros escuros levantados, em desenfreada carreira, rumo à saída da cidade. Em visita a Romão para um mate, naquele que seria marcado como o dia da desgraça, um amigo contou a ele da farra de quatro jovens bebendo cervejas e fazendo estardalhaço, alucinados no bar de seu restaurante do posto de gasolina da estrada.
- Tem umas poucas horas antes do assassinato da Divina que isto se deu, contou também ao delegado, acrescentando que pareciam muito jovens. E de fora, especulou, considerando prova da suspeita os moços terem feito o pagamento da despesa de um pequeno conserto na camioneta com dinheiro e do combustível e das bebidas com cartão de crédito.
- Eu vi de longe e até achei estranho a tal camioneta parada no meio da rua, de porta aberta, ninguém dentro, na frente do beco. Não atinei naquela hora, que não sou de cuidar além da minha vida e dos cachorros, contou ao delegado uma Florzinha estranhamente calma, olhar cravado no corpo já sem vida da amiga Divina.
Falava ao delegado como se repetisse uma gravação sem ambiente, a voz dura, gelada, embora o calor ainda intenso remanescente de um dia escaldante. A contenção da mulher lhe pareceu deslocada, mas Florzinha era mesmo estranha, justificou de imediato o policial.
- Eram quatro. Entraram rápido no carro. Saíram correndo feitos o capeta fugindo da cruz, levantando poeira e fumaça, aos guinchos de pneu. Quando cheguei ao beco, ainda vi os olhos da Divina perdendo o brilho. Tão rápido como o sangue brotava por tudo que é lado do corpo da pobrezinha, contou a mulher.
Romão sepultou Divina numa cova de chão, em cerimônia simples. Pediu culto breve na capela, que assistiu com as crianças. Mandou botar um mármore rosa suave sobre o túmulo da esposa amada e mãe dedicada, como ficou gravado em verde claro no epitáfio. Lírios brancos esculpidos adornaram a lápide.
Ainda moço, pelos 40, deixou encomendada ao Alarico a venda de tudo o que tinham, acertou com as duas irmãs da Divina mandar a prole com elas para a Capital. Recomendações redobradas especiais a Laurita. E sumiu.
Uma novela de Adroaldo Bauer Spíndola Corrêa
Porto Alegre - Janeiro de 2007 - Rio Grande do Sul - Brasil

2 comentários:

  1. Que alegria ver um texto que se desenrola tão macio -- ao mesmo tempo forte, marcado e suave. És um escritor de grande habilidade, querido das ninfas e musas, meu amigo!

    Abraços apertados do Verde.

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  2. Agradecido, amigo Daniel.
    Generosidade tua.

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