11 maio, 2007

O dia do descanso de Deus

Novela já vendeu 200 exemplares antecipados

A novela O dia do descanso de Deus será lançada em 31 de maio, na Palavraria Livraria-Café. Rua Vasco da Gama, 165, Bairro Bom Fim, Porto Alegre.
O autor espera leitores e amigos para a sessão de autógrafos a partir das 19horas.
Reserve seu exemplar por e-mail: adroaldo@portoweb.com.br


apresentação

Uma Tragédia Gaúcha

Luiz Pilla Vares

Conheço Adroaldo Bauer Corrêa há mais de 20 anos, quase 30. Nosso encontro primeiro foi na redação do jornal onde ambos trabalhávamos.
Ele era um redator competente, mas o que primeiro nos aproximou foram as lutas sindicais, num momento único de nosso sindicato, quando, creio que pela primeira vez, tivemos efetivamente um movimento de massas na luta pelos direitos profissionais. Depois, surgiu a identificação política nas idéias da esquerda socialista...
Não sei se por nosso longo relacionamento, em que partilhamos solidários vitórias e derrotas, Adroaldo Bauer me distinguiu para ser o apresentador de sua novela que agora chega aos leitores brasileiros, O Dia do Descanso de Deus.
E, nesses assuntos, sou muito exigente.
Disse-lhe claramente que, apesar de nossa amizade longa e, felizmente, duradoura, eu iria primeiro, sem nada lhe prometer, ler o texto. Se gostasse, escreveria. Se não, eu, com toda a franqueza, recusaria a honraria.
Mas aí está O Dia do Descanso de Deus, que li com prazer como deve ser a verdadeira relação de um leitor com a obra que tem em sua frente.
Pois a novela que agora se edita tem todos os ingredientes capazes de tornar a leitura agradável e prender o leitor até o fim.
O cenário é o Rio Grande do Sul, num vai e vem entre o interior do Estado e Porto Alegre. O tempo, de certa forma indefinido, são os anos de chumbo, que nunca são referidos diretamente, mas que pairam como nuvens cinzentas sobre todo o transcorrer da novela.
As personagens são familiares para quem vive no Rio Grande do Sul, mas que nunca caem na caricatura meramente regional. Todas são problemáticas e universais...
A história tem idas e vindas, sem que se transforme em um quebra-cabeças que muitas vezes se torna, na literatura moderna, uma chatice.
Nada disso.
A ausência de temporalidade linear contribui para o leitor se apoderar da personalidade e dos dramas de cada uma das personagens e chegar progressivamente ao caminho que conduzirá a um desfecho ao mesmo tempo trágico e reconciliador...
Temos agora, diante de nós, uma magnífica tragédia que vai enriquecer a nossa literatura. Desde já estou ansioso para ver nas livrarias e, como pretende o autor, nas bancas de jornais e revistas, O Dia do Descanso de Deus.
Aliás, um longo dia, que dura todo o tempo da novela.
Valeu a espera por Adroaldo Bauer escritor.





Capítulo 1


Romão nada temia. Tipo calado, até taciturno.
Consta que rira uma vez.
- Ainda menino, diziam alguns velhos que o conheceram antes que passasse a usar chapéu. Um de abas curtas e copa baixa. Enterrado na cabeça até onde se plantavam sobrancelhas negras, espessas.
- Foi uma brincadeira, molecagem, abrandava Alarico, amigo de Romão e dono de um cachorro manco que, atiçado ou desatinado, se botou um dia na jovem Florzinha até arrancar-lhe as saias. A de cima e a de baixo, na frente do criaredo, luz do sol a pino, no meio da rua. Romão não conteve o riso. Pouco, bem que se diga. É verdade que logo cedeu à vergonha por zombar da desgraça alheia e fechou-se.
Coragem em Romão era sobrenome. Ele não assinava, mas o povo sabia. Assinatura do tipo é marca, se faz, se repete, não muda mais. Não é bengala, nem muleta tomada emprestada. Faz parte do corpo, constitui o ser. Romão nada temia. Só cuidava da vida não ser pega de surpresa pela morte. Cuidava tanto que não descuidava nem da própria sombra. Cuspia no chão sobre a sombra do corpo, sem se mexer. Era para saber se nela não se escondia a morte, ouviram-no justificar a esquisitice uma vez.
Pois o tal gesto foi mal interpretado de uma feita. Achou um cuera de especular da razão. Intimou no grito. Sem resposta, desacatou Romão. Grosseria berrada na calmaria morna do lusco-fusco num boteco. Buliu em vespeiro. Houvesse trilha seria em dó de contrabaixo com arco de crina de cavalo e corda de tripa de carneiro. Sem erguer os cotovelos da madeira luzidia de um balcão tosco encerado por dúzias de mangas de flanela, brim ou panos de algodão cru ali escorridos, nem levantando os olhos de sob a aba do chapéu, Romão falou, ainda de costas, fitando o reflexo do desafiante num espelho enferrujado da prateleira de bebidas atrás do balcão:
- Valentia não é coisa que se cheire ou bebida barata que se arrota em boteco.
- Nem covardia! Urrou o cuera, no tom de desfeita, puxando da cintura uma pistola, disparando um tiro.
Um jorro de sangue descreveu leve curva por sobre o reflexo do homem no balcão até uma cruz efêmera formada pela sombra de ambos no assoalho. Romão percebera o sujeito às suas costas sacando uma pistola, girou felino o próprio corpo sobre os saltos da bota. Projetou veloz o fio da navalha. Riscou de vermelho, fora a fora, o pescoço do desafeto. Não se ouviu mais som qualquer, após o corpo desabar frouxo os costados no piso gasto do bar.
Romão bateu de leve os saltos no assoalho de madeira, anunciando despedida. Saiu a passo. Lento e firme. Parou um momento no meio da rua sob o sol que banhava morno o fim de tarde. Sem se virar para o que já lhe parecia distante passado, cuspiu novamente na própria sombra.


Capítulo 2

Uma outra vez Romão se vira assim tão ou mais desafiado. Era linda a morena. Das que param o trânsito mesmo. Das que dão torcicolo em marmanjo. Andar macio, um cuidado singular em saltos altos e finos, meneios leves e sensuais das cadeiras formadas na medida certa. Virando suavemente a cabeça ao passar por ele, sorriu e piscou rápido. Naquela vez alguém poderia ter visto Romão tremer. Isto se a testemunha fosse atenta a impacto tão fulminante quanto breve. Ele sentiu o corpo inundado por calor úmido de um mar verde jamais visto. Os olhos da morena racharam a crosta áspera de um Romão até ali invicto. E o puseram sem norte feito caíque preso em redemoinho de lagoa. Sem fluxo coerente de corrente, ficou-lhe o coração exposto, acelerado, aos pulos.
Acabara de cuspir na sombra e se deparou com a empreitada. Das grandes. Pensou até que nunca antes experimentada por alguém em tanta intensidade. Aquilo era o que era. Fosse amor, fosse paixão. Coisa de Deus ou coisa do Cão. Divina, a morena que prendeu Romão, o fez em puro recato, mesmo belíssima mulher.
- Prova provada de que é possível ser linda sem cair na vida, cochichava Florzinha, espantando cachorros imaginários de perto de si com gestos estabanados dos braços esgrimindo uma vassoura, o que começou a fazer já quase adulta, de uma certa feita, e nunca mais parou.
Divina e Romão casaram e logo tiveram filhos. Uma era menina. Linda igual à mãe, diziam todos que viam Laurita, como a vida batizou. Geniosa, Laurita da Divina era num tempo sonho doce, devaneio. E, já em seguida, “açoite da alma, cravelha a esticar as cordas da razão”, descreveu certa vez um repentista homenageando a mulher que desabrochava na menina.
- Isso é prosa mole de louco ou apaixonado, castigava Florzinha, agitando braços e vassoura. Como se pudesse alguém ser um sem ser outro, arrematava aos próprios botões.
Já, os meninos de Romão, trigêmeos, pareciam gente comum. Os filhos de Romão – e a filha! Esbravejava sempre uma Laurita exasperada – foram crianças fortes, que ainda tiveram sarampo, mas de resto sadias, estudiosas, endiabradas, às vezes todas, não só Laurita. E também muito felizes...
Até o dia da desgraça.



Capítulo 3

Com mais de 30, porque de mulher bonita não se sabe a idade, Divina foi morta a facadas. Parecia dia de descanso de Deus.
- Foram quatro homens, Romão. A pobrezinha não se deixou violar, mas sangrou até morrer, dos ferimentos duma quantidade enorme de golpes de faca. Jesualdo, o delegado chamado a cuidar do caso, dava o triste relato, acabrunhado e ainda de pé frente ao cadáver da morena Divina.
Romão, chegado ali às pressas por convocação da tragédia, era o mapa da dor. Face crispada, inerte, mãos apertadas em punho terminavam braços caídos ao longo do corpo. Alguém jura que viram lágrimas a marejar-lhe os olhos. Mas não prova. Nem se sabe que Romão tenha jamais falado disto a alguém.
A história, no entanto, é contada assim desde o começo e repete, repete, vira verdade maior que o fato.
- Chorar não muda o homem, é certo, mas lhe mostra a alma na inteireza, a mãe lhe dissera da vez em que caíra feio do lombo do primeiro potro que fora montar em carreira e lanhou costas, cabeça e pernas no pedregulho da cancha reta.
- Estropiado, mas vivo e pronto pra outra, saudou Alarico, ajudando o menino Romão a levantar e sacudir a poeira que se misturava a finos fios de sangue na camisa nova de flanela xadrez amarelo e preto.
Dor pela morte da mulher adorada, raiva pelo anseio de justiça e amargosa mágoa pela reparação impossível, suspeitava Jesualdo.
Por muitos anos o policial remoeu o caso, que investigou nos limites da lei. De outras maneiras, Romão foi quem cuidou.
Testemunhas contaram sobre “uma camioneta azulona” com os vidros escuros levantados, em desenfreada carreira, rumo à saída da cidade. Em visita a Romão para um mate, naquele que seria marcado como o dia da desgraça, um amigo contou a ele da farra de quatro jovens bebendo cervejas e fazendo estardalhaço, alucinados no bar de seu restaurante do posto de gasolina da estrada.
- Tem umas poucas horas antes do assassinato da Divina que isto se deu, contou também ao delegado, acrescentando que pareciam muito jovens. E de fora, especulou, considerando prova da suspeita os moços terem feito o pagamento da despesa de um pequeno conserto na camioneta com dinheiro e do combustível e das bebidas com cartão de crédito.
- Eu vi de longe e até achei estranho a tal camioneta parada no meio da rua, de porta aberta, ninguém dentro, na frente do beco. Não atinei naquela hora, que não sou de cuidar além da minha vida e dos cachorros, contou ao delegado uma Florzinha estranhamente calma, olhar cravado no corpo já sem vida da amiga Divina.
Falava ao delegado como se repetisse uma gravação sem ambiente, a voz dura, gelada, embora o calor ainda intenso remanescente de um dia escaldante. A contenção da mulher lhe pareceu deslocada, mas Florzinha era mesmo estranha, justificou de imediato o policial.
- Eram quatro. Entraram rápido no carro. Saíram correndo feitos o capeta fugindo da cruz, levantando poeira e fumaça, aos guinchos de pneu. Quando cheguei ao beco, ainda vi os olhos da Divina perdendo o brilho. Tão rápido como o sangue brotava por tudo que é lado do corpo da pobrezinha, contou a mulher.
Romão sepultou Divina numa cova de chão, em cerimônia simples. Pediu culto breve na capela, que assistiu com as crianças. Mandou botar um mármore rosa suave sobre o túmulo da esposa amada e mãe dedicada, como ficou gravado em verde claro no epitáfio. Lírios brancos esculpidos adornaram a lápide.
Ainda moço, pelos 40, deixou encomendada ao Alarico a venda de tudo o que tinham, acertou com as duas irmãs da Divina mandar a prole com elas para a Capital. Recomendações redobradas especiais a Laurita.
E sumiu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário no post. Seu retorno ajuda a melhorar a qualidade do meu trabalho.
Se você não é inscrito no blogger, clique em anônimo e deixe um nome ou endereço para contato.

Twitter Updates

    follow me on Twitter