13 março, 2010

Quadrado Mundo



Crônica de Somos Paulo
Rita Apoena

Dessa vez, o caroço foi longe.
Caroços caem como bailarinos não sabem.
Devo ser a mãe de muitas árvores, pois muitas coisas acontecem quando eu me
retiro.
Então, quando a feira acabar, seguirei os meus passos de pés
gigantescos até me esquecer, para sempre, desse caroço caído no chão.
Vou me sentar em frente àquela janela e recomeçar o meu trabalho, sem sequer me
lembrar que a terra continuará o dela.
Seguirei a minha vida como se não fosse a culpada por tantas árvores de maçã.
Passarei por elas como se sempre estivessem ali, talvez, eu pisando e esmagando os brotos de outrém.
Para mim, é apenas a fotografia de um caroço jogado no meio da terra, vista
por um gigante velho, de vestido roto. Mas se brotar, Gulliver, se brotar,
serei apenas um tronco, envelhecido e ingrato, descansando no meio da
sombra.
Eu gosto de andar pelas ruas de Santo André e pelas ruas de são tão
lindas.
Eu gosto das cidades em terceira pessoa do plural, mas vou me mudar para a cidade de Somos Paulo, onde todos têm o mesmo nome e todos se dizem
bom dia. O menino veste uma calça comprida, um olhar esmurrado e traz uma
maldade no peito, como um broche de flores feridas e pétalas não
cicatrizadas. Disse o pingüim dessa casa que o medo guardado fora da
geladeira apodrecia em maldade de medo. Essa é a que se espalha pelo corpo,
sem que você perceba, e faz com que se afaste de outras pessoas. Longe, não
consegue entender o motivo delas. E nem elas, o seu. Mas o seu coração
continua numa bondade que ninguém mais entende e, então, chamam aquilo de
maldade. Assim era o menino, tentando ser bom, a sua maneira.
Agora há pouco, por exemplo, ficou parado no meio da rua, olhando o cachorro
pulguento. Os olhos fundos daquele cachorro. Do cachorro sabia enxergar o
fundo da gente. O menino quis voltar para casa. O cachorro foi atrás. O
menino parou. O cachorro parou, sentou-se e inclinou a cabeça. O menino
voltou a andar. O cachorro acompanhou. Quando o menino virou para trás,
chutou a cara do cachorro, para que não esperasse o amor que ele podia dar.
E, mesmo assim, o menino tem olhos de esperanças. As pessoas más são as que
mais têm esperanças no mundo. Só quem reconhece a própria maldade sabe que,
no escuro da noite, um travesseiro é incapaz de abraçar. Quando o menino
cresceu e apanhou do ladrão, apanhou e apanhou, ergueu os olhos machucados
e disse: agora você pode me matar, agora você pode chutar a minha cara, mas
uma coisa eu sei, eu sei que você não era assim, eu sei que você era só um
menino abraçado às pernas da sua mãe. O ladrão engoliu dois goles de raiva
e saudade, talvez de um tempo que não era oco de mãe, talvez dos sonhos de
futebol, ele agora um homem chutando as pedras, sozinho no gramado, a mãe
com vergonha dele. E só agora, olhando a maldade lá fora, eu enxergo o meu
rosto refletido no vidro. O ladrão não está sozinho. O menino não está
sozinho. Paulo não está sozinho. A noite é uma coreografia de condenados,
dançando e rolando na cama, com o travesseiro incapaz de abraço.
Então, a maldade é isso?
A maldade é esse que chora, sozinho, a sua mão cheia de
espinhos? Se a maldade for isso, se for esse desamparo e essa solidão, esse
medo que. O ladrão acerta o seu primeiro golpe. O soco desliza sobre a boca
de Paulo, em câmera lenta, enquanto gotas de sangue flutuam no ar. Os
antebraços tentam forjar as verdades, na frente do rosto, mas o ladrão
atinge o estômago. O corpo de Paulo encurva-se para a frente, abraçando o
vazio de um desamparo. Paulo ergue os olhos machucados e diz: agora você
pode me matar, agora você pode chutar a minha cara, mas uma coisa eu sei,
eu sei que você não era assim, eu sei que você era só um menino, abraçado
às pernas da sua mãe. O ladrão engole dois goles de raiva e saudade, talvez
de um tempo que não era oco de mãe, talvez dos sonhos de futebol, ele agora
um homem chutando as pedras, sozinho no gramado, a mãe com vergonha dele. E
só agora, olhando a maldade lá fora, eu enxergo o meu rosto refletido no
vidro. O ladrão não está sozinho. O menino não está sozinho. Paulo não está
sozinho. No meio da rua, Paulo e os violentos, Paulo e os condenados. Paulo
e os ignorantes de amor. Todos no chão, encolhidos e ajoelhados, como
sementes de pedra daninha, incapazes de brotar. Ao lado de fora, uma árvore
cresceu para cima enquanto uma rua se deitou. Há uma página de um livro
sendo pisada no meio da calçada, enquanto o jornal tenta voar,
pendurando-se no vento. O jornal pousa em triângulo sobre a terra, do mesmo
jeito que Paulo tenta levantar o corpo, esmurrado pelo ladrão. Depois de um
dia inteiro enrolando bananas na feira, é claro que o jornal acreditaria no
mendigo, dizendo que o asfalto é só uma noite dura e sem estrelas. O dia
dormindo em trapos remendados de sol, enquanto a noite faminta arranca os
sonhos com as mãos. Mais outro dia derreado pela noite e aquele homem quem
será. Aquele, que um dia foi menino a dormir no ventre da mãe e hoje é
mendigo, a dormir curvado do frio, na posição do feto que um dia foi. E,
agora, tão encolhido que o vento não haveria de encontrá-lo ali. Era só
fingir-se de morto, porque os mortos, sem ao menos respirar, enganam o
frio, o vento e a fome. As bananas da feira sendo enroladas pelas histórias
de Paulo. Um cachorro expulsando pulgas sobre as histórias de Paulo. O
estômago do mendigo gargalhando sob as histórias de Paulo. O ladrão
limpando o cocô do sapato sobre as histórias de Paulo. E eu acariciando o
jornal. O menino levanta um aviãozinho porque não sabe que o ódio explode
em bombas, chamas de fogo num vermelho voar. Como os pássaros vão entender?
Como os pássaros vão suportar voar outra vez? O caroço no meio da feira não
viu a flor sufocada nas pedras. E a flor não sabe que da terra também o
ódio se explode em campos minados, onde menos se espera, onde menos se
pisa. Como as sementes vão entender? Como as sementes vão suportar brotar
outra vez? O soldado pegou a arma lentamente. Segurou-a entre as mãos e
abriu os olhos, na esperança de que fosse um girassol. Mas sementes ao
reverso plantavam a morte no peito do outro e, por isso, ele calou. O
inimigo caiu no chão e levantou a mão com os dedos abertos. Um pedaço de
braço tentando brotar do chão estéril e murchando em seguida, com os
últimos raios de vida. Eles, completamente estranhos, já eram inimigos. O
girassol apontado para o céu. Da boca. E foi então que dois meninos, de
cabelos reluzentes, entraram correndo pelos campos concentrados de flores.
Duas armas de plástico, compradas na feira, explodiam em tiros ao som da
bochecha e eles se arrastavam pelo chão. Escondido atrás da barraca de
peixes estendidos, o menino pegou a arma lentamente. Segurou-a entre as
mãos e abriu os olhos, na esperança de que fosse de verdade. Mas era. Agora
você pode me matar, disse o menino crescido, agora você pode atirar na
minha cara, mas uma coisa eu sei, eu sei que você não era assim, eu sei que
você era só um menino, abraçado às pernas da sua mãe.
A mãe com os olhos de fúria, com as mãos na garganta do menino. Pétalas enfeitando o seu cabelo,
pétalas caindo por toda parte, até que a mãe precise de suas mãos para
costurar a manta que vai aquecer o menino. Ela cobre o menino até o pescoço
e beija a sua face, acaricia a sua barriga esperando o menino chegar. Sua
mãe como um anjo brilhando entre as pétalas que curam o pescoço ferido do
menino. O menino tira as mãos da mãe do seu pescoço. Eles precisam juntos
brincar de passa-anel, rindo até a brincadeira acabar. Quando a brincadeira
acaba, a mãe aperta mais um pouco o pescoço dele, aperta, aperta, até que
aperte tão forte que os braços fiquem com vontade de abraçar e, assim, a
mãe pára de enforcar o menino porque os seus braços abraçam. Um abraço tão
bom que o menino nem se lembra mais das mãos em seu pescoço. Ele, que
nasceu direto do coração da sua mãe, agora jaz sobre a terra, em companhia
de um caroço de maçã.
Essa é a cidade de Somos Paulo, onde todos têm o mesmo nome e todos se dizem bom dia.

2 comentários:

  1. Hummmmmmmmmmmm...agora sim!!!
    Cara!!! Parabéns !!!
    Fui...sou e serei sempre tua fã...talvez a numero 2...mas serei !!!!
    Mil beijos !!!!

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  2. Preciso dizer adeus...depois já não existe mais o Paulo, aquele vulgo Glauco, o cartunista, o cara gente boa...e seu filho Raoni, o futuro do bem...e lá existe uma mãe, mais uma sozinha...pra que rir se não há o que mais chorar?

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