18 junho, 2010

Im memorian de José Saramago

Foto fundação Saramago
Triste ficamos. A língua portuguesa desfalcada de uma grande riqueza, de forma e alma, enlutada.

Terminei de escrever O Império Bandido em janeiro de 2010. Retomara o fio da meada em outubro de 2009, de uma história iniciada ainda em 2007. Decidira há muito o pacto que exponho nessa carta que é minha introdução à novela recém publicada em 15 de junho, que autografarei em 26 desse mês, na Rua da República 351, Caffè Benne Dicto.
É também simples homenagem a um mestre, de um discípulo não muito novo, mas escritor de apenas duas novelas e alguns cadernos de poemas, admirador dos que bem resolvem as histórias em português.

Carta à pessoa que lê
Logo ao iniciar a leitura saberás da trama e adivinharás muito do conteúdo destas páginas. Meu objetivo inicial era o registro de um fato verídico: a chacina de três pessoas em uma favela. Publicados oito capítulos na Internet, uma leitora perguntou-me, duvidando, se alguma das personagens iam de fato morrer. Lamentava, ainda em 2007, cativada pelos primeiros movimentos das criaturas. Eu mesmo quase morri de infarto no intervalo entre essa pergunta e o fim da história, que pretendera concluir em 2008. Só a retomei em 2009. Tratei de dar fim ao drama e resposta às interrogações também de uma filha minha, que tolerava paciente em nossos almoços comentários sobre o avanço gradativo da trama, a saga das personagens, de uma em particular. Não vais matar essa também, né? O protesto exigiu-me criatividade, a mulher já voava pra morte.
Descrevo essas duas interações pra dizer que o drama não é uma história fechada no início, planejada. Adotei sugestões preciosas da amiga Glória Athanázio. Recolhi relatos da guerra de gangues em conversas no ônibus pra casa ao fim das jornadas de trabalho, apanhei um diálogo ao pé da janela de minha casa de dois meninos, quase crianças ainda, sobre traficantes de drogas, assalto à mão armada, um deles exasperado com ter de trabalhar 30 dias pra ganhar um parco salário, o outro alertando que o pai lhe falara sobre receber arma de terceiro pra assaltar: vais trabalhar até morrer pro cara que te arranjar o tresoitão...
A história mudou. De querela entre bandidos pobres, passou a examinar relações de poder, o tráfico de drogas como indústria, as decorrentes relações sociais dessa ordem bandida, pilar da ordem dominante, pois se realimentam uma da outra, espraiam-se como império, pois substrato fértil pra tanto havia.
Concluída a história, chega-me a fotografia de um soldado da ocupação estadunidense no Afeganistão armado até os dentes passeando vigilante em campos floridos de papoulas daquele país destroçado pela guerra. Dúvidas restantes sobre a abordagem se esfumaram. O texto reportava: seis anos após a ocupação militar, aquele país passara a líder mundial da exportação de heroína, responsável hoje por 97% da circulação dessa droga no planeta. Posso supor que algo similar ocorra em países onde esses técnicos assessoram a disputa de poder em nome da democracia e de alguma divindade.
Por fim, confesso pacto secreto com José Saramago: escrevi sem usar a grafia para pra essa preposição. Protesto como o mestre pelo desaparecimento com a reforma do acento da forma pára, do verbo parar.
Não escreveria para para descansar, mas pra descansar. Saramago não sabe dessa minha disposição. Basta que eu e tu saibamos.
Adroaldo Bauer

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário no post. Seu retorno ajuda a melhorar a qualidade do meu trabalho.
Se você não é inscrito no blogger, clique em anônimo e deixe um nome ou endereço para contato.

Twitter Updates

    follow me on Twitter