27 janeiro, 2007

O dia do descanso de Deus

Capítulo 1

Romão nada temia. Tipo calado, até taciturno.
Consta que rira uma vez.
- Ainda menino, diziam alguns velhos que o conheceram antes que passasse a usar chapéu. Um de abas curtas e copa baixa. Enterrado na cabeça até onde se plantavam sobrancelhas negras, espessas.
- Foi uma brincadeira, molecagem, abrandava Alarico, amigo de Romão e dono de um cachorro manco que, atiçado ou desatinado, se botou um dia na jovem Florzinha até arrancar-lhe as saias. A de cima e a de baixo, na frente do criaredo, luz do sol a pino, no meio da rua. Romão não conteve o riso. Pouco, bem que se diga. É verdade que logo cedeu à vergonha por zombar da desgraça alheia e fechou-se.
Coragem em Romão era sobrenome. Ele não assinava, mas o povo sabia. Assinatura do tipo é marca, se faz, se repete, não muda mais. Não é bengala, nem muleta tomada emprestada. Faz parte do corpo, constitui o ser. Romão nada temia. Só cuidava da vida não ser pega de surpresa pela morte. Cuidava tanto que não descuidava nem da própria sombra. Cuspia no chão sobre a sombra do corpo, sem se mexer. Era para saber se nela não se escondia a morte, ouviram-no justificar a esquisitice uma vez.
Pois o tal gesto foi mal interpretado de uma feita. Achou um cuera de especular da razão. Intimou no grito. Sem resposta, desacatou Romão. Grosseria berrada na calmaria morna do lusco-fusco num boteco. Buliu em vespeiro. Houvesse trilha seria em dó de contrabaixo com arco de crina de cavalo e corda de tripa de carneiro. Sem erguer os cotovelos da madeira luzidia de um balcão tosco encerado por dúzias de mangas de flanela, brim ou panos de algodão cru ali escorridos, nem levantando os olhos de sob a aba do chapéu, Romão falou, ainda de costas, fitando o reflexo do desafiante num espelho enferrujado da prateleira de bebidas atrás do balcão:
- Valentia não é coisa que se cheire ou bebida barata que se arrota em boteco.
- Nem covardia! Urrou o cuera, no tom de desfeita, puxando da cintura uma pistola, disparando um tiro.
Um jorro de sangue descreveu leve curva por sobre o reflexo do homem no balcão até uma cruz efêmera formada pela sombra de ambos no assoalho. Romão percebera o sujeito às suas costas sacando uma pistola, girou felino o próprio corpo sobre os saltos da bota. Projetou veloz o fio da navalha. Riscou de vermelho, fora a fora, o pescoço do desafeto. Não se ouviu mais som qualquer, após o corpo desabar frouxo os costados no piso gasto do bar.
Romão bateu de leve os saltos no assoalho de madeira, anunciando despedida. Saiu a passo. Lento e firme. Parou um momento no meio da rua sob o sol que banhava morno o fim de tarde. Sem se virar para o que já lhe parecia distante passado, cuspiu novamente na própria sombra.

16 comentários:

  1. Dos primeiros leitores:
    – E aí! Quando é que sai o livro. Quero ver inteiro e ler em papel, de uma vez só. Natália Lemos Athanasio.
    - Quando se lê uma novela, quer-se fugir do óbvio da trama. Numa linguagem ameaçadoramente contemporânea, Adroaldo Bauer, revela um passado que distorce um roteiro usual. Parece-me um excelente feijão e arroz chuviscado com o originalíssimo “molho farrapo”. Quero degustar até o fim. Tarcízio Teixeira Cardoso
    - Parabéns pelo livro, muito interessante. Vanessa Oppelt Conte
    - Nos dias de hoje tendo-se coragem já é meio caminho andado. Um abraço. Wolnei Prates.
    - Pois, Tchê, ainda que tivesse 100,00 pilas apenas, seriam teus. Sorte é que não são sem pilas. Abraço, pode contar comigo. José Augusto Zaniratti.
    - Prezado Colega, acredito que teu livro será um sucesso. Desejo sinceramente uma boa sorte. Carla Rosane de Oliveira Brum.
    - Uau Colega! Fico muito feliz de contatar assim diretamente com o autor de uma obra que, certamente, está lançando um grande talento na cena literária brasileira, fato que se evidencia já nas primeiras linhas do texto, quando nos vemos envolvidos por uma atmosfera habilmente construída... Com traços de jóia tratada por mãos de um raro ourives apaixonado pela beleza como ela é! Debora Lopes Moreira.
    - Para fazer relembrar e dar solidez à cultura para nossa comunidade. Essa inspiração, o Velho lá de cima não manda pra qualquer um. João Boaventura Nicodemo de Toledo.
    - Considerando o meu amor incondicional à ficção e o carinho e respeito que lhe dedico aceito ser padrinho desta provável obra-prima da literatura pós-moderna. José Ademar Lucas Quoos.

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  2. Bom estilo! Adroaldo, podes conter com o amigo Gerlach!
    Como posso ajudar?

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  3. Li os trechos de tua novela no blog citado. Gostei muito e faz com que não queiramos deixar de ler. Preciso ver o final.

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  4. Passei pra dizer que atualizei meus textos no blog

    Passe lá, se puder ta? Se puder divulgar aos seus amigos tb, gostaria muito.

    Abraços
    LUCIANO

    PAPIROS DE ALEXANDRIA

    http://papiros.zip.net

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  5. Adroaldo, estou sirpreso com o seu espaço. Gostei bastante. E voltarei pra conferir mais dessa escrita conceitual.
    abraço

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  6. Grato.
    Fale mais sobre o que considerastes conceitual.

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  7. Maravilhoso, amigo Adroaldo! Maravilhoso, fabuloso, forte e econômico nas palavras! Uma aula! Já era admirador de seus comentários, mas agora admiro-te ainda mais a prosa. Sentir-me-ia humilizado, não fosse este mundão tão grande para caber escrevedores de todo naipe e habilidade.

    Teu Romão, em seu silêncio, tem muito a ensinar ao menino Amarath, se este souber aprender. Seria também companheiro certo de silencioso entardecer na estrada do obstinado Delian (que ainda irás conhecer de outra fábula) em sua busca por sabe-se o quê...

    Um abraço apertado de seu novo amigo Duende.

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  8. Em tempo... leia o livro que te indiquei, se assim lhe aprouver. Há de tocar fundo em tua sensibilidade.

    "Sobre histórias de fadas", de J.R.R.Tolkien. Vende-se barato esta maravilha sem preço nas melhores livrarias.

    Abraços apertados, novamente, do Verde.

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  9. Agradecido, Daniel.

    Vou procurar J.R.R.Tolkien para ler, a teu conselho.
    Tuas palavras muito me estimulam a persistir no intento da publicação.

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  10. Fico muito feliz que minhas palavras sirvam-te de alento em tão belo ofício!

    Continue, sim, a escrever!

    Abraços apertados do Verde.

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  11. Olá, Adroaldo.
    Não sabia que tinha esse blog mt interessante. Parabéns. Vou voltar aqui mais vezes e tb vou lincar em meu blog p ficar mais fácil retornar.
    Criei um blog de endereços culturais, linquei o seu blog com foto sua e espero que me autorize a permanência do endereço lá. Se gostar, divulgue a idéia entre amigos que tb têm blogs culturais e que possam eles fazerem o mesmo mandando foto e endereço p postar lá.
    o endereço: http://culturaworld.blogspot.com/

    Visite e vai entender melhor a idéia.
    abcs

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  12. Grande Leandro!
    Excelente tua iniciativa de divulgar blogueiros que divulgam cultura. Falarei a amigos sobre teu blogdosblogsdecultura.
    Tens a licença, que já era tua antes de pedir por ela.
    São vitais para nossa sobrevivência enquanto diferença e diversidade os gestos e inciaitivas que alargam os limites dos espaços da cena da cultura de brasileiros.
    Parabéns pela iniciativa.

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  13. Eu gostei muito.
    Vais publicar outros capítulos aqui?
    Quando estará em banca?

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  14. Bueno, tchê,
    a idéia é ir à gráfica agora em abril, ainda. E ir marcando os lançamentos e definindo algumas poucas livrarias e bancas aqui na cidade.
    Devo pôr um formulário para venda pelo correio aqui no blog.
    Estou estudando o formato.
    Edição de autor é isso e mais um caniço, não é mesmo?

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  15. Bom dia, Adroaldo
    Gostei.
    O ritmo das frases curtas é magnético.
    O primeiro capítulo, embora às vezes com uma simplicidade quase rebuscada, é claro no perfil do protagonista.
    O segundo é agridoce, pelo romantismo narrado de forma quase asséptica.
    O terceiro deixa o leitor bem enredado. Curioso para ler o restante.

    Antonio Candido

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  16. Então, mesmo sem planejar, estamos perto do tal de thriller, é isto Antonio?

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