17 agosto, 2006

Minha liberdade acaba onde começa a tua?


Leonardo Boff *

Muitas vezes escutamos esta frase, tida quase como um princípio. Nunca vi alguém alguém questioná-la. Mas pensando nos pressupostos subjacentes e nas possíveis conseqüências, devemos questioná-la seriamente.
É a típica liberdade propugnada pelo liberalismo como filosofia política.
Com a derrocada do socialismo realmente existente se perderam algumas virtudes que ele, bem ou mal, havia suscitado como o sentido do internacionalismo, a importância da solidariedade e a prevalência do social sobre o individual.
Com a ascensão ao poder de Thatcher e de Reagan voltaram furiosamente os ideais liberais e a cultura capitalista: a exaltação do indivíduo, a supremacia da propriedade privada, a democracia delegatícia, por isso reduzida, e a liberdade dos mercados.
As consequências são visíveis: atualmente há muito menos solidariedade internacional e preocupação com as mudanças em prol dos pobres do mundo do que antes.
É neste pano de fundo que deve ser entendida a frase "a minha liberdade acaba onde começa a tua".
Trata-se de uma compreensão individualista, do eu sozinho, separado da sociedade.
É a liberdade do outro e não com o outro.
Para que a tua liberdade comece, a minha tem que acabar. Ou para que tu comeces a ser livre, eu devo deixar de sê-lo.
Conseqüentemente, se a liberdade do outro não começa, por qualquer razão que seja, significa então que a minha liberdade não conhece limites, se expande como quiser porque não encontra a liberdade do outro. Ocupa todos os espaços e inaugura o império do egoísmo.
A liberdade do outro se transforma em liberdade contra o outro.
Essa compreensão subjaz ao conceito vigente de soberania territorial dos estados nacionais. Até os limites do outro estado, ela é absoluta. Para além desses limites, é inexistente.
A conseqüência é que a solidariedade não tem mais lugar. Não se promove o diálogo, a negociação, buscando convergências e o bem comum supranacional.
Por ocasião da crise do gás entre o Brasil e a Bolívia assistimos à vigência deste conceito de liberdade neoliberal e de soberania individualista, manifestada por muitos.
Normalmente quando esse paradigma entra em função, se instaura o conflito para cuja solução se apela à força. A soberania de um esmaga a soberania do outro, sacrificando a liberdade.
Foi sabedoria do Presidente Lula não se pautar por esta lógica e não ter desistido, para irritação de gente do velho paradigma da força e do troco, de incansavelmente dialogar e de buscar convergências com o presidente Evo Morales. No que efetivamente foi bem sucedido mostrando que a política do ganha-ganha é possível e preferível a do ganha-perde.
Por isso, esta deve ser a frase correta: a minha liberdade somente começa quando começa também a tua. É o perene legado deixado por Paulo Freire: jamais seremos livres sozinhos; só seremos livres juntos. Minha liberdade cresce na medida em que cresce também a tua e conjuntamente gestamos uma sociedade de cidadãos livres e solidários.
Por detrás desta compreensão da liberdade solidária se encontra o princípio humanista: "Faze aos demais o que queres que te façam a ti".
Ninguém é uma ilha. Somos seres de convivência. Todos somos pontes que nos ligam uns aos outros. Por isso ninguém é sem os outros e livre dos outros. Todos são chamados a serem livres com os outros e para os outros.
Como bem deixou escrito Che Gevara em seu Diário: "Somente serei verdadeiramente livre quando o último homem tiver conquistado também a sua liberdade".
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* Teólogo. Membro da Comissão da Carta da Terra

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