25 setembro, 2007

A Hospedaria do Diabo - Capítulo 7








- A senhora tem certeza de que não é trabalho, dona Ofelina? É possível que volte só amanhã pela manhã, mesmo. A gente nunca sabe, não? Depois de tanto tempo, nem sei o que se faz mais em festa...
- Não é trabalho, Carlota, o Zelito é um mimo de criança. Fica tranqüila e vê se te diverte um pouco, que só trabalhar embrutece a alma. Vê se arranja um namorado firme, bonitão e trás ele aqui pra gente conhecer.

A mofa da vizinha tentava desanuviar a tensão que percebia em Carlota, enfiada numa saia tão justa e curta que lhe deixava o par de coxas bronzeado quase todo à mostra. Era uma mini-saia em brim lavado azul, que fez combinar com uma blusinha vermelha esvoaçando solta desde as alças fechadas em laços quase infantis sobre os ombros nus de um moreno conquistado ao sol no tanque de lavar e no estender as roupas no varal ou no quarador. Dali só as tirava ao cair da tarde de todo o dia em que não chovesse.
- Então, desde já fico agradecida e lhe devendo um presente. E tu, guri, cuida da dona Ofelina pra mamãe que já volto, tá bem?
Beijou e abraçou o menino, tapinha na própria testa a dizer que estaria pensando nele, dois beijos de comadre na vizinha e uma rápida volta sobre os calcanhares que fez os sapatos de tênis rangerem no assoalho do alpendre e as duas mulheres e a criança rirem do fato, antes de abanarem-se às mãos em despedida.

Desceu rápido as ruelas do morro, quase todas vazias de adultos àquela hora de início de tarde da sexta-feira feriado, ao encontro da turma de meninas da Avenida, que haviam todas combinado de irem juntas ao parque de diversões. Ela não estranhara o convite das adolescentes, embora já com filho e aos 19 anos, por saber que a consideravam menina, mais por pequenina que por de fato. E, também, por acompanhar à risca a moda da juventude, que conhecia até pelo avesso.
A maioria das jovens da turma era de famílias para quem Carlota lavava e passava trouxas e trouxas de roupa há já quase cinco anos, desde que deixara a pensão em que se alojou ao chegar a cidade e mudou-se para a casinha construída numa ponta de terreno cedida a ela pela futura vizinha Ofelina no cume do morro em que foi morar.
- Eu mesma fiz a casa! – jactava-se Carlota. E a verdade é que a fizera mesmo em parte, ajudada por dois moleques do beco, que subiam os caibros e as folhas de zinco por cordas para o oitão e o telhado. O resto foi tábua e prego, prego e tábua, depois tinta, tinta e tinta, já no último mês do ano que a obra durou. Certo que os alicerces e o conjunto de alvenaria para banheiro e cozinha ela contratou de um pedreiro dali mesmo, que o fez em um sem número de fins de sábados em que não tinha bicos fora do morro. E tudo em troca de um bom chimarrão cevado a capricho, uma rapadura puxa que ela assegurava ser da colônia e, ele muito agradecido a isso, pela roupa sempre bem lavada e passada.

Carlota começava a duvidar ter sido boa idéia aceitar a coação da turma animada para a reunião-dançante após à tarde de domingo no parque com todos aqueles rapazes que se enrabicharam nelas há primeira hora que chegaram ao lugar. Elas todas em mini-saias, tubinhos justos, shortinhos, blusinhas tomara-que-caia transparentes e até camisetas pintadas em casa com desenhos originais resultantes de amarras de cordões enfiadas em baldes de tintas corantes, do tipo daquela do artista do filme de música que ela adorara ter visto e se apaixonara pelo descabelado. Os pés em sapatos de tênis ou sandálias de couro e mesmo de borracha para enfrentar o calor de mais de 30 graus que dera folga ao inverno já quase primavera.
Um loirinho miúdo se arranjou de par e, toda vez que olhava para ele, onde fosse, nos brinquedos ou num banco do parque, estava de olhos encravados nas coxas dela.
- Nunca viu perna de mulher, ô tarado!
O rapaz ficara rubro como a blusa dela em conseqüência da chacota súbita. Sem ligar para o acanhamento, ela convidou o rapaz para andarem juntos na montanha-russa.
Santo remédio. Ele cerrou o semblante em quase pânico. Ela viu-se livre do olhar concupiscente dele pela primeira vez. E para o resto da tarde.
Por pouco não retorna para casa mais cedo e dá fim à festa, quando ele, enjoado e aliviado do medo do brinquedo, vomitou a seus pés na saída da montanha russa. Carlota alcançou-lhe um lenço mínimo que catou numa bolsinha de crochê já um pouco marcado de batom vermelho. Deu-lhe as costas para não pejar ainda mais o estremecido. Condoeu-se, mas ria para si mesma da fragilidade outra vez confirmada por aquele candidato a seu par.
Eunício, era o nome todo do Nisso, como os demais da turma de rapazes o chamavam. Não tinha ainda 18 anos, não prestara serviço militar, estava no segundo Científico. Nascido e criado na Capital, sempre morou na Zona Norte, em um casarão de quadra e meia da Chácara dos Bentos, na Estrada da Pedreira.
Quase um depoimento formal, essa última fala apressada do rapaz a fez parar o questionário, um rosário banal de prestação de contas de onde estudas, já trabalhas, onde moras, de que gostas, sabes dançar, jogas bola, tens namorada, vens sempre aqui...
A música que os dois dançavam, já as mãos dele à cintura dela, as dela à nuca dele, os rostos colados ainda que o suor porejasse das frontes, as pernas quase esmagando umas às outras, roçando leve de quando em vez as pélvis, cessou para ela, embora ambos continuassem a rodar suavemente, cobrindo a extensão da sala, os passos guiados firmes por Nisso, que a conduzia leve tal um mestre-sala, do que ela muito gostara.
A memória dela desandou em turbilhão, como uma fita desenrolada de carretel na matinê, à menção do nome do bairro onde também ela nascera: Estrada da Pedreira... Para todas as pessoas que conheciam Carlota adulta isso era um segredo.

(haverá continuação, mas a novela está ainda em produção)

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