06 setembro, 2007

A Hospedaria do Diabo - Parte V


Sem o sol, a primeira hora da manhã é ainda mais escura que o comum dos dias daquele rigoroso inverno. Nuvens carregadas recortadas amiúde por coriscos e trovões. Ainda que longínquo, o ribombo faz tremer as carcomidas estruturas da antiga carceragem. E mesmo as almas de alguns apenados, acordados de chofre, ainda sem tino para o acontecido. O vento varre impiedoso e frio os corredores fracamente iluminados, balouçando lúgubres pêras incandescentes, bulbos pingentes do teto úmido por apenas fios coalhados de moscas. O lugar é malsão. Promotor celerado dos resfriado a gripes, estas a pneumonias muita vez severas comandantes de mortes rápidas. O ruído de ferro rolando na pedra apenas cimentada do lúgubre corredor sequer é percebido nas celas. O tranco compassado do pino torto da roda de uma maca carrega de estalidos os intervalos retumbantes. A 664 e a 662 são celas convenientemente esvaziadas de presos para obras inacabáveis, justificativas de pedidos sucessivos de material de construção à administração pública. Um outro corredor extenso e de mesmo modo parcamente iluminado, com ainda menos lâmpadas que a galeria principal, inicia à frente da cela 666, agora aberta, para onde a maca é empurrada com evidente contrariedade e contraditória pachorra por um sonolento gordo de roupa mal abotoada, a pança pontuda estrebuchando das casas do jaleco roto atirado por sobre os ombros feito disfarce de fantasma em festa infantil de assombração. São exatas 6 horas.
Dali sai ensacado em plástico fechado por cordas o corpo retesado do encarcerado que estrugira uivos lancinantes até três horas antes. Nenhum dos poucos presos já despertos vê mais que de esguelha, ou por espelhos colados em varetas feitas de antenas quebradas de automóveis espichadas para fora das grades, a muita distância, mais que a rápida transição de cinco metros da cela ao vão oculto pelas paredes. Desde a 666 para o inferno, sem escalas, dizem entre si os presos sempre que a cena se repete, porque o destino da maca deslizando o féretro improvisado entre as paredes é a enfermaria do lugar, que além de socorro urgente serve também para a acomodação temporária de cadáveres até a chegada da gente da Medicina Legal, que costuma “demorar além da conta”, como consta do terceiro relatório seguido da administração do presídio enviado por trimestre aos superiores hierárquicos da secretaria de Justiça. É que ali ficando, sem a devida atenção asséptica, para não imporem além da incômoda ocupação indevida de espaço dos ainda vivos, são levados à câmara fria do dispensário, enfiados de flanco na geladeira de seis portas, único recurso do lugar com temperatura achegada ao zero capaz de preservar os corpos da ruína irreversível. “Morto está”, sentenciara o gordo enfermeiro em final de plantão de 24 horas, apalpadelas rápidas no pescoço sob o queixo e nos braços do corpo estirado no chão de pedra da fria cela. Último recurso, o estetoscópio sobre o peito à cata de batida cardíaca não encontrou ruído. O ribombar dos trovões cessara como a oferecer réquiem ao ligeiro diagnóstico. O silêncio tornara a azáfama funesta. Do que exatamente morrera o mais recente encarcerado da hospedaria do diabo, ainda não era possível saber. A inspeção ligeira do corpo não revelara ferimento de faca ou enforcamento, as causas mortes mais freqüentes no lugar, além da pneumonia, da tuberculose e das recorrentes assombrosas asfixias. Fora do ramerrão, cuecas apresentando à frente e às costas minúsculas placas endurecidas de sangue coagulado, única peça das vestes todas do homem com aqueles sinais sabe-se lá quando produzidos, de que modo e por quem. A testa inchada denunciava cabeçadas dadas nas paredes da cela, assim como as costas das duas mãos raspadas nas juntas dos dedos todas denunciavam ter ele esmurrado violentamente o concreto das paredes e do piso, o que se verificaria após exame do lugar com facilidade para encontrar vestígios da pele do homem. Quase se podia afirmar que se debatia em dor, não que doesse porque batia. O despertador da enfermaria disparou o alarme às 7h30min, mesma hora em que fenomenal aguaceiro desabava os céus sobre a carceragem e os sinistros portões de quatro metros de altura se abriam em par a dar entrada para o carro de transporte administrativo que trazia ao lugar o diretor do presídio, confirmando a ordinária programação de trabalho. O locutor de uma emissora de rádio dava o boletim meteorológico informando que a chuva iniciada há pouco poderia continuar por todo o dia e mais o próximo, que a temperatura ia baixar a próximo de zero, produzindo o fenômeno de variação de 30º graus em menos de 24 horas.
- Desliga essa merda aí, Pancrácio, é só notícia ruim que dá esse rádio, porra!
Lentamente, o motorista alcançou o painel do veículo com a mão direita enluvada e desligou suavemente o aparelho, conforme o comando espinafrado do chefe, sem qualquer comentário. Antes de retornar a mão ao volante, acertou o quepe e alisou o nó da gravata de modo também autômato.

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